Desde o instante em que os roteiristas Alex
Kurtzman e Roberto Orci reintroduziram o conceito de viagens no tempo no reboot
Star Trek de 2009 e alteraram a cronologia de Jornada nas Estrelas em
consequência do encontro da então inexperiente tripulação da Enterprise com o
Spock original Leonard Nimoy, diversas possibilidades surgiram para o futuro da
franquia, muitas das quais são aproveitadas com êxito por este Além da
Escuridão e que, combinadas com a narrativa de J. J. Abrams que é tão ambiciosa
quanto é reverencial, rendem um dos mais empolgantes e emocionantes filmes da
série.
Homenageando logo na cena inicial a série
sessentista criada por Gene Roddenberry, o roteiro escrito por Kurtzman, Orci e
também Damon Lindelof explora um planeta habitado por uma civilização primitiva
e, a partir desta missão, economicamente restabelece as conflitantes mas
complementares personalidades de Kirk (Chris Pine), Spock (Zachary Quinto) e
McCoy (Karl Urban, de Dredd). O primeiro, impulsivo, não hesita em contrariar o
regulamento da Federação para salvar a vida do segundo, cujo mantra “as
necessidades de muitos superam as necessidades de poucos” o impelia ao
autossacrifício, enquanto o último tecia conselhos um tanto divertidos e
movidos sobretudo por emoção. Certo é que, finda a missão que quase causou a
morte de sua tripulação, Kirk é rebaixado à posição de imediato no comando da
Enterprise abaixo do mentor Pike (Bruce Greenwood), apenas para recuperá-la
após o terrorista John Harrison (Benedict Cumberbatch) dizimar parte da frota
da Federação e obrigá-lo a ingressar em uma missão de vingança rumo ao
longínquo planeta Kronos, terra dos beligerantes Klingons.
Sem estar limitado a ser uma
ficção-científica de ação, Além da Escuridão, assim como outros exemplares da
série, parte de sua premissa simples mas eficiente para discutir a tensão
geopolítica (ou uni-política) e a necessidade da humanidade em, embora gozando
paz, buscar novas armas, no caso John Harrison, e guerras que poderão
eventualmente produzir o efeito contrário e provocar sua própria destruição. O
que nos leva ao drama de Spock que, depois de testemunhar seu planeta ser
destruído, vislumbra a possibilidade de morrer com incrível tolerância e
frieza, mesmo para seus padrões lógicos. Desde ai, J. J. Abrams com enorme
inteligência subverte as expectativas de quem conhece o cânone da franquia –
sobretudo A Ira de Khan - e prepara terreno para não apenas reimaginar eventos
banais, como a decisão de investir Sulu (John Cho) no comando interino da
Enterprise, o primeiro passo antes de ser comandante de sua própria nave em A
Terra Desconhecida, mas também de momentos capitais, os quais por óbvio não
irei revelar.
Tudo isso sem confundir reverência por
despersonalização, e Além da Escuridão é autossuficiente como seu comandante e
ousado para intercalar batalhas no espaço com ações pontuais em solo que, a
despeito do transtorno obsessivo compulsivo de Abrams por flares luminosos e da
montagem tresloucada e comprometedora na versão 3D, são dirigidas com
competência e valorizam a coesão da tripulação e a importância de cada membro,
não apenas de Spock e Kirk. Por sinal, se este permanece arrogante,
irresponsável e imprudente, levando-o a realizar falsos julgamentos e ser
manipulado por todos, às vezes com tamanha facilidade que põe em cheque sua
capacidade em liderar a tripulação, aquele, mesmo sem a solenidade da voz de
Leonard Nimoy e permitindo que eventos óbvios passem despercebidos debaixo de
seus olhos, enfim deixa que a emoção penetre em sua carcaça racional, criando
um personagem dividido entre o “sentir” e o “não sentir” e que culmina no
momento poético em que lhe perguntam “como você escolhe não sentir?”.
Aliás, como escolher a melhor atuação entre
os tripulantes? Se Simon Pegg, o Scotty, seria minha escolha natural justamente
por ser o mais divertido, não poderia esquecer da energia que Anton Yelchin
traz a Chekov, da segurança de Zoe Saldana como Uhura, ainda que o romance com
Spock seja supérfluo, ou de John Cho, Alice Eve e Karl Urban, mesmo que agora
com um papel reduzido. Por outro lado, não resta dúvidas de que Benedict
Cumberbatch destaca-se sempre que surge em cena, encarnando um vilão
assustadoramente pálido, dono de uma voz gélida e robótica que confere maior
ênfase à sua pronúncia silábica, e surpreendentemente complexo, senão observe o
momento em que ele vira as costas para Kirk e Spock a fim de que eles não
assistam a seu lapso de fragilidade durante uma revelação importante.